10 anos do “Acorda Aracaju”: memórias e reflexões acerca das “jornadas de junho”

Compreender junho de 2013 é fundamental para nos posicionarmos melhor na realidade, conectados cada vez mais com os movimentos de base e as lutas sociais

Por Alexis Pedrão[*]

Neste ano, completamos uma década das “jornadas de junho”, as massivas manifestações ocorridas no Brasil em 2013. Pensamos que esse processo foi bastante complexo, com diversas interpretações e precisamos retomar essas reflexões para pensar a realidade atual. Nesse sentido, iniciativas acadêmicas e políticas, como debates públicos nas universidades, entrevistas, lançamento de livros, estão sendo organizadas para organizar a reflexão crítica desse importante momento histórico. Em Sergipe, o Laboratório de Estudos do Poder e da Política – LEPP/UFS está organizando um seminário sobre o tema. Para contribuir com a discussão, apresento uma visão sobre o significado das jornadas de junho, algumas memórias e reflexões – partindo do ponto de vista de quem participou diretamente dessas mobilizações, e um breve comentário sobre o legado e os impactos de junho para as lutas do presente.

As interpretações de junho

Existem diversas interpretações acerca das jornadas de junho. Gostaríamos apenas de situar a nossa posição antes de avançar para a realidade aracajuana. Por um lado, encontramos análises que colocam as jornadas de junho como um grande movimento do imperialismo norte-americano que construiu uma massa de manobra no Brasil e abriu caminho para o golpe da presidenta Dilma e a ascensão da extrema-direita. Por outro, que foram movimentos extremamente progressistas, que lutou por questões concretas da população e demonstraram toda a força da classe trabalhadora.

Em nossa opinião, são dois pontos de vista equivocados, que não conseguem captar o movimento real das jornadas. Inicialmente, a direita não estava nas ruas. Eram manifestações legítimas da população por melhorias nos serviços, por mais direitos e contra o aumento das passagens de ônibus nas cidades. Todavia, a direita não assistiu de camarote. Quando o movimento cresceu, a burguesia desceu às ruas para disputar os rumos do movimento, posicionando novas pautas como a PEC 37, fim do foro privilegiado e o tema da corrupção, que não estavam colocados anteriormente, isto é, buscando canalizar o processo legítimo de lutas para outra agenda.

Por isso, junho foi disputado nas ruas, à quente. Os setores de direita com mais força econômica e política, conseguiram encerrar as manifestações em seu caráter de reivindicação popular de direitos, girando para uma agenda reacionária e golpista, pautada em preconceitos e dirigida por setores burgueses com forte peso da classe média. Mas não foi uma manifestação de direita desde o começo. Junho de 2013 tem características bem diferentes das manifestações pró-golpe de 2014 e 2015, embora os elementos golpistas já se apresentassem desde as jornadas – e mesmo bem antes delas. As lutas legítimas da população foram capturadas por uma burguesia que viu nas manifestações de rua uma oportunidade para impor sua política conservadora.

Assim, comungamos da opinião de Marcos Pestana que considera que:

(…) Junho foi atravessado por distintas forças e projetos políticos, cujo equilíbrio variou no tempo. De acordo com essa interpretação, os impulsos progressistas que estiveram na origem das manifestações foram posteriormente acompanhados por uma linha reacionária, que se expressou de forma razoavelmente difusa nas últimas passeatas de Junho e alcançou máxima expressão nas manifestações em prol do impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2015 e 2016. (PESTANA, 2018, Cinco anos de junho de 2013 – EOL)

Antecedentes do “Acorda Aracaju”: o destaque da luta do transporte

Em Aracaju, assim como diversas capitais e grandes cidades, a pauta principal era o aumento abusivo e ilegal das passagens de ônibus. O aumento dado, à época, pela gestão do prefeito João Alves foi de 0,20 centavos. Em 2013, a passagem passou de R$2,25 para R$2,45 em Aracaju, Barra dos Coqueiros, São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro. A luta pelo transporte é antiga em Aracaju, desde a década de 80. Contudo, algumas semanas antes das jornadas, as manifestações não passavam de 100 a 150 pessoas, formada em sua maioria de estudantes, desempregados, trabalhadores informais e trabalhadores precários (telemarketing, taxistas clandestinos, etc.).

Em 2013, o movimento “Não Pago” era o principal movimento de enfrentamento ao aumento da passagem de ônibus, luta pela melhoria de qualidade do transporte, tarifa zero e estatização. O Não Pago era um movimento pautado pelas ações de rua. Muitas manifestações terminavam com queima de pneus, bonecos simbolizando a prefeitura, empresas e trancamento de vias públicas. A repressão era uma constante contra o movimento e algumas vezes também ocorreram agressões, prisões arbitrárias e perseguições contra a militância por parte da guarda municipal e polícia militar. Além do transporte, a questão da moradia também tinha destaque com as Ocupações do Novo Amanhecer e as ocupações do MOTU.

Após a forte repressão policial em São Paulo e explosão dos protestos por todo o país, as manifestações avançaram e começou a circular pela internet uma convocatória para um grande ato contra o aumento da passagem e por mais direitos para a população trabalhadora. Todos os movimentos sociais, sindicatos, centrais e partidos de esquerda ajudaram a construir esse chamado e em 20 de junho foi realizada a manifestação intitulada “Acorda Aracaju”.

“Acorda Aracaju”: da reunião no comando da PM às 40 mil pessoas nas ruas de Ará

O dia começou agitado. Apesar de o movimento Não Pago não ser o organizador – ou pelo menos o único organizador do “Acorda Aracaju”, a imprensa, as autoridades políticas e a polícia entendiam que o movimento era o principal ator por trás da manifestação. Dessa forma, desde as 6h passamos por uma bateria de entrevistas no rádio, internet, jornal impresso e televisão. Em seguida, às 10h, fomos convocados para uma reunião com o alto comando da Polícia Militar, no quartel da Rua Itabaiana. Entramos no quartel dentro dos carros da OAB, pois solicitamos que também acompanhassem a reunião. Foi uma reunião difícil para pressionar o movimento a assumir a coordenação do ato e que qualquer conduta violenta ou criminosa seria de nossa responsabilidade. Obviamente não assumimos tal responsabilidade, mas foi o que a Polícia e a imprensa disseram à sociedade. Tudo que acontecesse naquela tarde estaria na conta do “Não Pago”.

Pela tarde, uma mistura de euforia com alívio. O ato transcorreu sem nenhum incidente e foi um dos maiores atos de rua da história de Aracaju. A internet foi fundamental para a mobilização. As redes sociais massificaram a convocatória do ato. Esperávamos uma grande manifestação, mas não daquela forma. Para uma geração que nunca tinha visto protestos de massa, “de repente” tínhamos 40 mil pessoas nas ruas de Aracaju. A cidade, literalmente, parou no dia 20 de junho de 2013. De diversos bairros, as pessoas vinham caminhando para se aglomerar na Praça Fausto Cardoso, a exemplo da caminhada que saiu da Rosa Elze e foi crescendo enquanto passava pelo Bairro América e Cirurgia. O ato saiu da “Fausto Cardoso” e encerrou no terminal DIA em uma catarse coletiva, com os manifestantes correndo, subindo o viaduto e tomando conta de todas as avenidas.

Assim como em outras cidades, a direita buscou disputar os rumos do ato. Gritos permanentes de “sem partido”, que eram entoados tanto por jovens que estavam indo as ruas pela primeira vez, quando por filiados a partidos de direita, que agiam de forma oportunista para se colar aos/às manifestantes. Vale registrar que a manifestação de Aracaju foi uma prova incontestável de que os atos estavam sendo disputados nas ruas tanto pela esquerda, quanto pela direita. Logo na saída, a manifestação se dividiu em duas, com o movimento Não Pago, movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda caminhando pela Avenida Hermes Fontes, enquanto que o setor de direita seguiu pela Avenida Ivo do Prado, encerrando o ato em frente ao shopping Jardins.

Ao final, já pelo cair da noite a SETRANSP fechou os terminais e retirou os ônibus de circulação. As pessoas voltaram caminhando ou de carona para casa. Mas, nesse dia, ninguém se incomodou. O recado estava dado e tivemos uma grande conquista.

A primeira e única vez na história de Aracaju que a passagem de ônibus baixou

Muitas pessoas não sabem e outras não lembram, mas a passagem de ônibus chegou a abaixar em 2013. Primeiro, diminuiu R$0,10 centavos exatamente no dia do “Acorda Aracaju”. Antes do início da manifestação, o vice-prefeito de Aracaju – José Carlos Machado – anunciou à imprensa a queda do valor da passagem, com o argumento da desoneração dos tributos do governo federal. Em ato de desespero, a prefeitura correu para se explicar que a decisão não se relacionava com os protestos.

O secretário de Comunicação Social, Carlos Batalha, esclarece que esta decisão não tem nenhuma relação com os protestos anunciados para a tarde desta quinta-feira, 20. “O prefeito João Alves Filho e o vice-prefeito, José Carlos Machado, não estão interessados em ser o pai da redução da tarifa e, sim, extremamente preocupados com o bem estar da população, porque eles possuem espírito público”. (Prefeitura de Aracaju, 2013)

Em um segundo momento, o movimento Não Pago entrou com uma ação popular no judiciário e derrubou o aumento da passagem no dia 10 de julho de 2013 com o preço retornando para R$2,25. Dessa forma, a pressão das ruas combinada com a ação institucional culminou com uma vitória histórica. Infelizmente, o judiciário tem os seus limites de classe, gênero e raça, e, dois dias depois da decisão de primeira instância, o desembargador de plantão acatou o recurso das empresas e derrubou a liminar, fazendo retornar o preço abusivo. São bons exemplos da validade e importância dos protestos de rua na pressão frente à prefeitura e o judiciário.

A formação de um bloco unitário para as manifestações

Após o “Acorda Aracaju”, em que cada organização política e movimento se organizaram por conta própria, as organizações de esquerda convocaram uma reunião de urgência para discutir a possibilidade de uma intervenção unitária nas manifestações, tendo em vista a forte presença de setores da direita. Essa reunião ocorreu em uma noite de garoa fina, na antiga sede do PSOL Aracaju, na Rua de Estância, próximo a faculdade Pio X e foi um marco fundamental para uma análise comum da situação e da necessidade de fortalecer uma atuação unitária dos setores populares e de esquerda nas manifestações.

Entretanto, como esse diálogo entre os sindicatos, movimentos e organizações de esquerda com o movimento Não Pago nunca existiu de forma efetiva, havia desconfianças quanto ao oportunismo de setores políticos que agora queriam colar a sua imagem com o movimento que “liderava” as manifestações de rua. A proposta era que o movimento “Não Pago” escrevesse e apresentasse uma nota pública para a imprensa em conjunto com os sindicatos, centrais e partidos e partidos de esquerda com diversas bandeiras de luta da esquerda, bem como, se formasse um bloco de esquerda no interior das manifestações para ajudar na autodefesa em caso de possível violência contra militantes de esquerda. A assinatura do Não Pago era um recado importante para a sociedade naquele momento e o movimento se comprometeu com a edição de um panfleto unitário e a formação do bloco nas manifestações.

A sequência do movimento: plenárias abertas, repressão e criminalização

O primeiro “Acorda Aracaju” foi o maior ato das jornadas de junho. Foi o ápice dos protestos que começaram pequenos e se massificaram em todo o Brasil. O movimento de organização que era plural, composto por muitos grupos e organizações políticas, passou a se reunir nas escadarias do Teatro Tobias Barreto para discutir os próximos passos. As plenárias eram abertas para qualquer pessoa falar, propor e votar os encaminhamentos. Foi, por um pequeno intervalo de semanas, uma experiência importante de assembleia popular.

O segundo “Acorda Aracaju” foi marcado para seis dias depois, mobilizando cerca de 10 mil pessoas, ou seja, um número três vezes menor que a primeira manifestação. Esse protesto, diferente do primeiro, foi mais radicalizado, inclusive com a queima de um ônibus no trajeto e quebra do portão da sede da prefeitura de Aracaju. Mais de 30 pessoas foram detidas ao final da manifestação. Daí em diante, foram mais dois ou três atos, que foram diminuindo de tamanho devido à forte repressão e criminalização.

Impactos de junho: ampliação da organização de base comunitária, o surgimento de novas lideranças políticas e a importância da mobilização popular

Um aspecto importante foi uma maior atenção para as lutas comunitárias, periféricas, ampliando a pauta para além do transporte, incluindo a moradia, o saneamento básico, segurança alimentar, meio ambiente, combate ao racismo, machismo, etc. Se fortaleceu a perspectiva do direito à cidade e combate às opressões, contra a lógica da venda/privatização dos direitos, do ambiente e espaços públicos e de respeito à diversidade. O MTST no Brasil e em Sergipe é um dos melhores exemplos de movimentos sociais que se fortaleceram a partir dos processos de junho de 2013. É nesse processo que passamos a fortalecer trabalhos de base com os territórios, deixando a construção do movimento Não Pago para construir o movimento negro e a luta urbana, a exemplo da Ocupação Centro Administrativo, no Veneza 2.

Outra análise importante diz respeito às novas lideranças políticas de extrema-direita e de esquerda que surgiram no cenário político após as jornadas de junho. Para citar três exemplos da esquerda aracajuana, em 2014, a professora Sonia Meire foi candidata pela primeira vez concorrendo ao governo de Sergipe e alcançou mais de 47 mil votos. Em 2016, na primeira eleição de Aracaju após as jornadas, Linda Brasil e Demétrio do Não Pago atingiram grandes votações na capital, mas não se elegeram por conta da lei eleitoral. Hoje, Sonia Meire é vereadora de Aracaju, Linda Brasil é deputada estadual – a mais votada da capital – e Demétrio, presidente do PSOL Aracaju.

Finalmente, uma importante lição de junho é que a luta institucional não tem sentido, caso não esteja em sintonia fina com o movimento das ruas. Mesmo que, dez anos depois, lutadoras e lutadores ocupem espaços políticos importantes, o transporte coletivo nunca esteve tão ruim em Aracaju e nas cidades vizinhas. A vida continua muito difícil após anos de golpe e extrema direita no comando do país. Sem a mobilização, não temos saída. As jornadas de junho tiveram seus potenciais e limites. Assim, compreender junho de 2013 é fundamental para nos posicionarmos melhor na realidade, conectados cada vez mais com os movimentos de base e as lutas sociais.

[*] Alexis Pedrão é professor, militante do movimento negro e da Resistência/PSOL

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