Na ponta do mapa, no menor estado do país, tem gente fazendo ciência capaz de ganhar o Brasil e o mundo. Tudo isso de dentro da escola pública, sob liderança feminina. Em Canindé do São Francisco, no alto sertão sergipano, o Centro de Excelência Dom Juvêncio de Brito tem desenvolvido projetos de iniciação científica que não só obtiveram reconhecimento nacional como colaboraram para definir o futuro de centenas de estudantes da rede estadual.
Os projetos são coordenados pela professora de Química Lark Soany Santos, em parceria com outros educadores, e propõem a solução de problemas reais da comunidade com base em recursos nativos. Foi dessa maneira que surgiu o Farma Sertão, aliando o conhecimento popular e ervas típicas da região para a produção de medicamentos fitoterápicos.
Outro projeto de destaque é o Lactaneja. Trata-se de uma bebida láctea fermentada, produzida a partir do soro do leite. O produto aproveita o descarte de diversas fábricas espalhadas pela bacia leiteira sergipana, da qual Canindé faz parte. Para saborizar, são utilizadas frutas e plantas regionais, com destaque para a palma.
Essas e outras iniciativas começaram de forma improvisada, utilizando locais e instrumentos alternativos. Aos poucos, o próprio sucesso dos projetos ofereceu as condições para que novos surgissem. Foi assim que o Dom Juvêncio ganhou um laboratório. Os equipamentos e vidrarias chegaram mais tarde, quando a escola recebeu o Prêmio de Incentivo ao Empreendedorismo Científico (Piec). Foram quase três mil itens recebidos, totalizando mais de R$ 58 mil.
“É muito mais do que desenvolver um projeto e adquirir conhecimento. O que está por trás disso é uma experiência social e a formação de cidadãos capazes de intervir no meio em que vivem. E a gente faz isso valorizando o nosso lugar, o nosso sertão, que é tão menosprezado, levando isso para os lugares mais distantes”, destaca Lark.
Protagonismo
Os projetos do Centro de Excelência ajudaram não só a mudar rumos acadêmicos, mas também a própria história de vida dos estudantes. Anne Gabriela Almeida, 18 anos, é egressa do colégio e, hoje, estuda Farmácia. Em pouco tempo de universidade, ela já garantiu publicação em uma revista científica internacional e se tornou bolsista CNPq. Tudo isso começou, segundo Anne, dentro do laboratório do Dom Juvêncio.
“Desde 2019 que eu me interessei pela metodologia ativa de ensino daqui. Em 2021, consegui entrar, e foi assim que a Lactaneja surgiu. Esse projeto nos levou para os lugares mais inimagináveis. Foi a primeira vez que andei de avião, conheci várias pessoas… E a ciência, hoje, é tudo para mim. Não me vejo mais fazendo outra coisa. Escolhi Farmácia justamente por me levar à pesquisa. Vou seguir nesse mundo, porque é minha felicidade, é o que me motiva. Não tenho outro sentimento a não ser gratidão”, resume a universitária, que teve como dupla no Lactaneja a egressa Evilly Gabriela Mendonça Oliveira.
Diógenes Rodrigues, de 17 anos, é estudante do 3º ano do ensino médio e um dos autores do Farma Sertão. Apreciador dos números desde pequeno, ele passou a considerar o manejo de substâncias em laboratório como vocação por conta da experiência no Dom Juvêncio. “Eu me encontrei na ciência com o Farma Sertão. Sou outra pessoa depois daqui, porque percebi que a ciência muda o mundo. É uma emoção ver seu projeto saindo do papel e ver que ele tem potencial de trazer emprego e renda para várias pessoas”, afirma o aluno, que também pretende cursar Farmácia na faculdade.
A própria orientadora dos trabalhos científicos diz ter entendido seu caminho profissional com a vivência na escola. “Eu me sinto realizada, porque me encontrei no laboratório, no chão da escola. E em todos os projetos que criei as meninas foram protagonistas. A gente se torna uma inspiração para elas. Sou muito feliz sendo mulher na ciência, mostrando que a mulher pode estar onde quiser, inclusive no laboratório”, frisa.
Trajetória
Os trabalhos de iniciação científica se iniciaram quando o Dom Juvêncio se tornou Centro de Excelência, em 2018. Nesse período, chegou à escola a professora Lark. A proposta veio para cumprir o plano de metas do ensino em tempo integral. Também nessa época, chegou o convite para participar da Feira Estadual de Ciências, Tecnologia e Artes de Sergipe (Cienart). Foi o início de uma história de sucesso.
No começo, os projetos eram desenvolvidos fora do período de aulas, de forma complementar. Dos quatro inscritos na Cienart em 2018, dois foram premiados. Um deles, inclusive, rendeu uma bolsa de estudos que permitiu a uma das alunas a permanência na escola. Com a repercussão da feira, mais alunos quiseram participar da programação de iniciação científica em 2019. Desta vez, os projetos foram desenvolvidos dentro da grade curricular, associados a disciplinas eletivas livres.
Em 2019, dos cinco projetos levados à Cienart, quatro foram premiados. Em 2020, as eletivas livres viraram eletivas de iniciação científica. Até então, todos os projetos se baseavam em temas gerais propostos pelos quatro professores que coordenavam a iniciativa. Agora, cada aluno deveria, em parceria com seu grupo, desenvolver seu tema, problema e solução. Mais de 30 ideias foram apresentadas. Foi quando a pandemia pausou as atividades.
Em 2021, as disciplinas eletivas seguiram, e, mesmo com a continuidade da pandemia, dois projetos surgiram. Entre eles, esteve o Lactaneja, que recebeu prêmios no mesmo ano de criação. Em 2022, o projeto participou de outros eventos, ganhando o Brasil.
Também em 2022, um sonho foi realizado: a organização de uma feira no próprio Dom Juvêncio. A ideia era contemplar o maior número possível de alunos, já que nem todos poderiam ir à Cienart. A escola foi contemplada no edital de feiras de ciências escolares proposto pela Seduc em parceria com a Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (Fapitec). Assim, surgiu a Feira de Conhecimento e Arte (Feconar).
Na primeira Feconar, 51 projetos foram desenvolvidos, com a participação do 9º ano do ensino fundamental. Mais de 300 estudantes fizeram parte do evento, incluindo alunos de duas escolas localizadas em povoados de Canindé. Três mil visitantes passaram pela quadra do Dom Juvêncio para participar da primeira edição da feira, incluindo estudantes de Monte Alegre de Sergipe, Poço Redondo e Piranhas (AL).
Em 2023, a Feconar acontecerá entre os dias 4 e 7 de setembro. O evento terá a participação de 11 escolas, com estudantes do ensino médio e de todos os níveis do ensino fundamental. Quarenta e seis projetos são finalistas neste ano. A programação é filiada à Feira Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec), maior evento da categoria na América Latina.
Projetos
O Dom Juvêncio é ponto de partida para outras iniciativas de grande repercussão. O Lahutan Cosmetique, por exemplo, é um projeto que visa a produção de cosméticos com ingredientes naturais, próprios do sertão. A marca elaborada pelos estudantes traz um leque variado de produtos: desodorante, shampoo, sabonete e colônia, entre outros. Os alunos Elisa Duarte, 17 anos; Maria Clara Meneses, 16 anos; e Reynan Rodrigues, 15 anos, todos do 2º ano do ensino médio, assinam o projeto.
Outro projeto que utiliza o poder das ervas é o Triocrim, que traz produtos à base de alecrim. O xarope, o enxaguante e a cápsula têm baixo custo de produção, e visam aliviar problemas de inflamação de garganta, tosse e ansiedade. A egressa Maria Clara Vitor Silva, 18 anos, que hoje cursa Enfermagem, é autora do projeto.
Já a iniciativa Ansiedade de Primeiros Socorros – ADP consiste em uma proposta de intervenção em saúde mental. O projeto traz um kit voltado a terapias integrativas, além de promover palestras e formações. O objetivo é ampliar o suporte à comunidade escolar em casos de crise de ansiedade e outras ocorrências, oferecendo ferramentas de prevenção e controle. O aluno do 2º ano Lucas Adib Nascimento Magalhães, 16 anos, faz parte da equipe do projeto.
Segundo a diretora do Centro de Excelência, Rúbia Virgínia de Albuquerque, estas são apenas algumas entre muitas ações bem-sucedidas. “Acho que a troca de experiências é de grande valia para os nossos alunos. Muitos não acreditavam que tudo isso poderia acontecer. Então, incentivo é a palavra primordial. A gente começou em 2018, não é uma coisa de agora. Este é o resultado do que vem sendo trabalhado em todo esse tempo”, pontua.
Alcance
Desde 2018, os projetos científicos nascidos no Centro de Excelência Dom Juvêncio de Brito já participaram de 27 eventos, incluindo feiras e mostras. Para o custeio das viagens, os representantes contam com o apoio do Governo de Sergipe, que colabora com as passagens e hospedagem.
Até o momento, os projetos já garantiram presença em São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Distrito Federal e Alagoas. Em setembro, os representantes passarão novamente por São Paulo, na Feira de Ciência e Tecnologia das Nações (FeNaDante). Em outubro, é a vez do Peru, na Mostra Científico Latino-americana. Ao todo, mais de 600 alunos já participaram dos projetos ao longo dos últimos cinco anos.
“Nossos projetos alcançaram, por exemplo, a feira científica de um dos maiores colégios do Brasil. É outro universo. Chegamos lá com um projeto desenvolvido na cozinha de uma aluna, feito com as panelas da mãe dela, e fomos o primeiro lugar geral da feira. Isso mostra que fazemos algo de muita relevância. Além de representarmos Sergipe, representamos a educação pública, que é desacreditada. A gente mostra que a educação pública pode ser, sim, de qualidade, e que ela é de qualidade aqui, no sertão, na pontinha de Sergipe”, finaliza Lark.
Fonte: Agência Sergipe de Notícias
Foto: Igor Matias