A conta do endividamento da gestão Bolsonaro chega esse ano para Lula

Artigo escrito pelo doutor em Economia, Wagner Nobrega, sobre a relação da dívida/PIB deixada pelo governo Bolsonaro para Lula

Por Wagner Nóbrega1

Juntando os governos federal, estaduais e municipais, além da previdência social, a dívida pública medida como parcela do PIB (ou dívida/PIB), diminuiu nos dois anos mais recentes seguidamente (2021 e 2022). Reforçando a ideia de diminuição, ela aconteceu mesmo se considerarmos os meses e não o ano todo, pois em quase todos os meses desses dois últimos anos ela caiu.

Com tais diminuições, a dívida pública se tornou, em dezembro de 2022, menor do que em dezembro de 2019, quando foram respectivamente 73,45% e 74,44%.

O desempenho anterior a essa queda tratada foi no sentido contrário. A partir de dezembro de 2019 a dívida começou a aumentar mais rapidamente do que vinha aumentando até então, até chegar ao seu máximo em outubro de 2020 (87,6%).

O recorde atingido pela dívida no ano de 2020, poderia ser atribuído, mesmo sem muita comprovação, aos efeitos econômicos da pandemia.

Em parte, aquele aumento já se justifica pelo simples fato que o indicador com relação ao qual a dívida é medida foi péssimo naquele ano. O PIB caiu 3,3% em 2020. Por outro lado, a despesa pública (sem levar em conta a inflação) atingiu seu máximo histórico desde 2003 no ano de 2020. Finalmente, o orçamento aprovado em 2019 para o ano de 2020 era menor do que o de 2017 e 2018. Diante de tudo isso, era de se esperar que a diferença da despesa recorde atingida com relação ao orçamento aprovado fosse coberta com dívida.

Se desconsiderarmos o ano de 2020, pelo fato de ter sido o ano da pandemia e reunirmos às reduções da dívida nos anos de 2021 e 2022 aquela ocorrida em 2019, pareceria que a dívida estaria desacelerando, desde 2016. Mesmo assim, a relação dívida/PIB em 2022, ainda ficou quase 22 pontos percentuais acima do que era em 2013.

As quedas da relação dívida/PIB nos dois anos mais recentes, porém, decorreram do aumento do PIB nesses anos, quando a economia começou a se recuperar do efeito da pandemia. De forma semelhante, a proporção dívida/PIB diminui nos anos de 2011, 2012, 2013 e 2021, também por conta do aumento do PIB naqueles anos.

Nos anos quando a proporção dívida/PIB cai, exceto 2022, também aconteceram superávits primários, ou poupança pública, com receitas maiores de que despesas, ambas não financeiras. Esses superávits, porém, não foram os responsáveis pela redução da dívida, porque o esforço que eles representam é suficiente para compensar sempre uma pequena parte dos juros pagos nesses anos.

Quando a proporção dívida/PIB, ao contrário, aumenta, essa elevação decorre do pagamento de juros, exceto no ano de 2020, quando o déficit primário bastaria para fazer aquela proporção aumentar. Na única exceção a isso (2016), a desvalorização cambial aumentaria sozinha a proporção dívida/PIB, o que, por ser uma questão técnica não muito comum de acontecer, não é um fator crucial para o que é tratado aqui.

Para entendermos os juros enquanto propulsor da proporção dívida/PIB, precisamos considerar que o Governo Federal é responsável pela maioria da dívida pública.

Desde 2006, quando teve inicio a nova metodologia com que a dívida é calculada, a média mensal da parcela da dívida do Governo Federal na dívida total dos três níveis de governo é 75,1%, com no mínimo 66,6% e 91,3% no máximo.

A Dívida Mobiliária do Tesouro Nacional (DMTN), ou seja os títulos de dívida do governo federal, é a forma como se encontra a maior parte da dívida de todos os governos juntos. Desde 2006, a média mensal daquela participação é 64,1%, com 51,6% de mínimo e 80,1% de máximo.

As parcelas de responsabilidade do Governo Federal e na forma de DMTN na dívida geral são sempre proporcionais e respeitam uma ordem entre si, ao longo de todo o período. Assim, muito do que acontece com a dívida bruta do governo em geral depende do que acontece com a DMTN.

Descontada da dívida os ativos de créditos financeiros do setor público, essa proporcionalidade e predominância da dívida do Governo Federal se repete. O Governo Federal também responde pela maioria disso que se chama de dívida líquida, em todos os anos.

A DMTN, de dezembro de 2006 a março de 2016, teve quase sempre os mesmos valores mensais da dívida líquida do setor público (DLSP), de forma que o passivo a descoberto do setor público2 era provido por meio de alavancagem3. Em outras palavras, o saldo de dívida do governo depois de descontada a dívida de outros agentes econômicos par com o mesmo, era coberto com lançamento de novos títulos de dívida pública. Depois de março de 2016, porém, a DMTN tornou-se inferior à DLSP, mas ainda superior à parcela do Governo Federal nesse conceito.

Quando o endividamento aumenta continuamente com relação ao PIB a partir de maio de 2014 e a DLSP se torna maior do que a DMTN. Isso revela que o uso da dívida mobiliária se tornou insuficiente para rolar a dívida, o que veio à tona depois que as reduções da dívida bruta pelos empréstimos concedidos pelo Tesouro Nacional ao BNDES, como trataremos a seguir, passaram a diminuir.

De dezembro de 2006 a agosto de 2015, os empréstimos concedidos pelo Tesouro Federal ao BNDES cresceram quase ininterruptamente de 0,8% para 27,4% do PIB. A partir dessa última data, os citados créditos inverteram o rumo, passando a decrescer também quase sucessivamente, até chegar a 1,2% do PIB em março de 2023.

Na fase ascendente do crédito ao BNDES, a dívida com relação ao PIB caía tendencialmente. Com isso, o crédito ao BNDES anulou a diferença entre a dívida mobiliária federal e o saldo restante entre passivos e ativos do setor público. O descenso, porém, foi acompanhado pelo crescimento da dívida, fazendo aparecer a parte não coberta do saldo entre passivos e ativos.

Com as crises econômica e política de 2014 e sua consolidação em 2015, a nova equipe econômica da então presidente reeleita, Dilma Rousseff, assumiu lentamente que o superávit fiscal fixado em lei para 2015 era irreal e passou a propor o corte nos gastos.

Enquanto esse corte não acontecia, o endividamento acelerou-se. As taxas de juros implícitas no pagamento dos mesmos aumentaram desde o segundo semestre de 2014 para oscilar em um patamar de máximo histórico até agosto de 2016. Tais juros foram aplicados sobre títulos cujo prazo médio de vencimento estava crescendo até o máximo.

Como consequência do que foi dito, os juros deflacionados pagos pelos títulos federais saíram de um patamar médio de R$ 600 bilhões, entre 2009 e 2013 (o mais alto, desde 2003), para mais de R$ 711 bilhões, em 2016.

De outubro de 2016 a maio de 2020, uma longa sequência de cortes no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic) e o atrelamento de uma parte maior de títulos à Selic do que aos demais indexadores, além do encurtamento do prazo médio dos títulos, fizeram com que os juros implícitos pagos pelos títulos públicos caíssem quase ininterruptamente, juntamente com o volume de juros pagos pelos títulos públicos federais. Isso permitiu a desaceleração do endividamento.

Por conta da gradativa redução dos créditos ao BNDES, tratada anteriormente, a dívida líquida se aproximou da dívida bruta, com exposição de parte crescente daquela primeira não compensada por novos títulos públicos federais, ou seja, dívida que não se conseguia rolar.

A pandemia de COVID-19 veio facilitar a gestão da dívida, barateando-a, mas isso também permitiu seu uso como instrumento central da política econômica de resposta à pandemia.

Em 2020, o prazo médio dos títulos públicos federais atingiu o mínimo histórico de 40,7 meses e a taxa de juros implícita caiu também ao mínimo histórico de 0,4% ao mês. Como resultado disso, o volume de juros pagos deflacionados pelos títulos públicos federais cai a níveis só vistos até 2009.

Passada, porém, a pandemia, aquelas condições para a gestão da dívida se dissolvem.

Em reposta ao aumento colossal da dívida, os juros implícitos saltam de volta ao patamar recorde de 2014-2016. O prazo médio dos títulos é aumentado e com o crescimento da inflação e das incertezas, se elevam as parcelas dos títulos indexados pela inflação e pré-fixados. A parcela atrelada à Selic só não perde muito em relação às desses outros indexadores, porque também a Selic inverte sua trajetória e passa a crescer vertiginosamente. Com isso, o volume deflacionado de juros pagos, não só volta a crescer, como atinge um novo recorde de máximo em 2022. A manifestação desse movimento, ou o preço da escalada da dívida de 2020, porém, ainda não acontece em 2022.

A relação dívida/PIB caiu em 2021 por conta dos menores custos da dívida contratada durante a pandemia. Em 2022, quando ainda estava em ação a redução do crédito ao BNDES que diminuía a dívida líquida, conforme tratado anteriormente, a dívida já começa a aumentar nesse critério, mas como a carência, ou os prazos dos diversos títulos para se iniciar o pagamento dos juros da parte da dívida que crescera significativamente em 2020 ainda não se avolumara, a dívida continuava a cair com
relação ao PIB.

Quando os custos maiores da dívida a partir de 2021 superarem o saldo dos custos menores conseguidos em 2020, o aumento da dívida pública será inevitável. Com isso, pode-se concluir que os sinais de redução da dívida pública, ao invés de indicar a retomada da trajetória de sua queda, preparam o aumento da mesma. Conta que deverá ser paga a partir desse ano, portanto, no Governo Lula.

Fonte de dados: TABELAS especiais. Dívida líquida e necessidades de financiamento do setor público. In: Banco Central do Brasil. Estatísticas. Brasilia, DF: BCB, [2023]. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estatisticas/tabelasespeciais. Acesso em: jun. 2022.

1 Professor Associado 4 do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe, na área de
planejamento, orçamento e finanças públicas.


2 Ou sem equivalente em ativos que o mesmo possa reclamar.
3 Aqui significando apenas endividamento e não seu uso para financiar investimento.

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